Cuba
Abel Prieto: “A grande escola revolucionária de Cuba foi a participação”
O professor, escritor, cientista político e ex-ministro da Cultura de Cuba, Abel Prieto (foto), esteve no Brasil neste mês para participar da 2ª Bienal do Livro e Leitura, em Brasília, e também do encontro da Rede de Artistas e Intelectuais em Defesa da Humanidade, no Rio. Prieto concedeu uma entrevista exclusiva ao Vermelho, onde fala dos desafios enfrentados no atual período de abertura comercial cubana e do futuro da integração latino-americana
Por Sheila Fonseca do Vermelho
“Se realmente se pretende construir na América Latina uma aliança que perdure, ligada por afetos, relações reais e diálogo, a cultura tem que estar presente”. Essa é a ideia central que dá o tom à entrevista e define em boa parte o legado político e sociocultural de Abel Prieto.
Formado em Literatura Hispânica pela Universidade de Havana, ocupou o cargo de ministro da Cultura de Cuba por 15 anos, de 1997 a 2012, implementando em sua gestão a ampliação do diálogo cultural com países da América do Sul. Prieto também foi diretor do Editorial Letras Cubanas e presidente da União de Escritores e Artistas de Cuba, antes de tornar-se ministro. É autor dos romances “Los bitongos y los guapos” (1980), “Noche de sábado” (1989) e “El vuelo del gato” (1999). Atualmente ocupa o cargo consultivo de assessor do presidente Raúl Castro.
Bem-humorado, carismático e de discurso otimista, Prieto fala de questões relevantes para o Brasil, como o desenvolvimento do projeto de integração através da Rede de Artistas e Intelectuais em Defesa da Humanidade e faz uma previsão: “Prevejo, no futuro, uma Cuba em que o consumo não esteja associado à ideia de felicidade.”
Vermelho: A Revolução Cubana sempre atribuiu como um dos elementos centrais a questão do fortalecimento da cultura popular como resgate da identidade do povo cubano, num sentido abrangente. As manobras externas buscando a desestabilização desse modelo sociocultural e sociopolítico cubano foram as mais diversas desde o início da Revolução. O filósofo e ativista político Noam Chomsky chegou a afirmar certa vez que "Cuba foi vítima de mais terrorismo que qualquer outro país do mundo". Na opinião do senhor, em meio à questões econômicas e políticas tão extremas, como embargos que Cuba vivencia, o que se conseguiu consolidar da cultura popular cubana, de forma a ter um papel protagonista na definição da identidade do país?
Abel Prieto: O campo da política educacional e cultural sempre foram prioridades, pois são pilares da Revolução Cubana. Fidel dizia que uma revolução somente pode ser filha da cultura e das ideias. Então houve um trabalho muito duro, um processo de descolonização, de resgate da cultura popular, folclórica e de valorização da cultura africana, que havia sido oprimida, perseguida através dos anos, desde a colonização espanhola. Criou-se ainda nos anos 1960, o Conjunto Folclórico Nacional, que foi muito importante, foi um marco nesse processo de resgate cultural. Expressões da religiosidade africana, subestimadas pela igreja (católica), começaram a ser valorizadas nesta época através da consciência revolucionária, permitindo que novos valores fossem surgindo e se consolidando em Cuba. Investiu-se também como política na alfabetização de adultos, fazendo um trabalho duro para tirar o povo da ignorância. Criamos a “Casa de Las Américas”, que foi um divisor de águas na política cultural cubana, logo no inicio da revolução. Buscamos um projeto de valorização da nossa cultura, da cultura popular, mas nunca de maneira simplificadora. A grande escola revolucionária foi a participação. O que permitiu que a Revolução Cubana pudesse avançar, ter êxito e persistir até os dias de hoje, foi esse trabalho de resgate do nosso patrimônio cultural e a democratização do acesso à cultura.
Qual o impacto cultural do bloqueio norte-americano a Cuba? O senhor acredita na possibilidade de estarmos nos aproximando do fim desse bloqueio?
O bloqueio limita de muitas formas. Há o impacto político, social, econômico. Na cultura, limita os artistas, os escritores, porque os EUA são o principal mercado consumidor de arte. Então isso limita economicamente. E perde-se de ambos os lados, os músicos, escritores, artistas plásticos deixam de se apresentar em um mercado consumidor e os EUA, por sua vez, ficam privados da riqueza da cultura cubana. Eu creio que sem o embargo as escolas de arte teriam mais recursos, poderíamos investir mais. Recentemente o presidente norte-americano, Barack Obama, concedeu uma autorização à artistas cubanos para se apresentarem nos EUA. Mas é uma autorização muito precária, muito limitada, porque é em caráter acadêmico e não remunerado. Os artistas seriam liberados para se apresentarem em eventos específicos e não poderiam receber por seu trabalho. É difícil fazer previsões sobre o fim do embargo. Obama tem sido perseguidor implacável, talvez até pior do que a gestão Bush.
Como exemplo, recentemente houve uma polêmica com um medicamento patenteado cubano chamado Heberprot-P. Esse medicamento tem ação única no mundo, ele trata de feridas, úlceras nos pés causadas pelo diabetes, que são responsáveis por amputações. O Heberprot-p é o medicamento com melhor resposta na cicatrização dessas feridas. E em decorrência do bloqueio o remédio não podia ser comercializado nos EUA, deixando de beneficiar os cidadãos norte-americanos. Penso que para o fim do bloqueio falta um ato de valentia política.
O senhor acha que Cuba tem sido bem sucedida no seu modelo educacional e cultural? E qual a leitura crítica o senhor faz? No que e como pode melhorar?
Sem dúvida teve melhora na qualidade da educação. Creio que o que se pode fazer para melhorar é investir na melhora da qualidade dos professores. Cem por cento da população cubana hoje pode estudar. Somos um povo instruído, mas não somos um povo culto. Acho importante o investimento na formação ética de valores e conduta.
Cuba se situa na região do Caribe, que, tradicionalmente possui forte ascendência da cultura norte-americana. O senhor acha que a Revolução Cubana teve êxito no distanciamento e resgate cultural. Ou a ascendência americana ainda persiste?
Em Cuba fomentamos o sentimento anti-imperialista, mas não antiamericano. Há diferença. Publicamos autores como Edgard Allan Poe, mantemos um Museu da Casa de Hemingway, onde o escritor norte-americano Ernest Hemingway morou. Então há a valorização da nossa cultura, mas respeito pela cultura de qualidade estrangeira. Mas hoje ainda há uma influência da cultura americana. Através das emissoras de língua espanhola, se consome seriados de baixa qualidade, sem senso crítico, reality shows, programas culturalmente medíocres. A maneira de combater isso é buscar informar os jovens, para que eles tenham referências e discernimento. Como diz Fidel, “ser culto é a única maneira de ser livre”. É o que buscamos.
Em sua opinião a juventude cubana de hoje é politizada? Ou o senhor acha que houve uma despolitização? O jovem cubano se preocupa com a manutenção do modelo político e cultural de Cuba? Há esse desejo na juventude?
Não se pode generalizar. Pode-se dizer que hoje há uma vanguarda na juventude cubana. De jovens que leem muito, que escrevem, que produzem pensamento e são politizados. Uma parcela da juventude ativa, que debate e que está bem comprometida em levar adiante o projeto revolucionário cubano. Mas também há segmentos de nossa juventude que se deixam ganhar por esse tipo de mensagem superficial, trazida pela TV, por enlatados, pela internet e por outros meios. E o caminho para se combater isso não é a censura, é o fortalecimento da cultura nacional. A sociedade cubana é mais heterogenia que as outras. Há a questão do emprego como uma preocupação da juventude, que está buscando trabalho em profissões que não são as profissões das quais se formaram. Acho que tem que se escutar o jovem. Eu prefiro um jovem crítico.
O senhor foi ministro da Cultura por 15 anos. Qual foi o projeto cultural implementado por Cuba na sua gestão?
O que fiz foi só dar continuidade. Armando Hart, que foi ministro da educação de Cuba, responsável pelo programa de alfabetização, de erradicação do analfabetismo, foi que iniciou tudo isso e fez um trabalho insuperável para os artistas. Temos como meta a democratização da cultura sem concessões. Fomentamos o acesso à cultura. Na literatura, Don Quixote, de Cervantes, foi considerado um marco, com prensagem de 500 mil exemplares, e era vendido em bancas, por 1 peso na década de 1960. Não adotamos uma política cultural “chauvinista” apesar da necessidade de resgate da nossa cultura. Criamos a Universidade para Todos, dentre outros programas de democratização. A ideia é fazer aliança com a vanguarda artística.
Recentemente, em junho de 2013, o senhor deu uma declaração na conferência do Centro Cultural de la Cooperación, na Argentina, onde afirmou que “a integração de nossas Américas, se não for cultural, não haverá integração. Pode haver integração comercial, tratados de grande transcendência, mas todo esse conjunto de ações termina sendo reversível sem uma plataforma de integração cultural. Sem esse respaldo (cultural) a integração é frágil”. Qual a integração, o diálogo cultural entre Cuba e a América Latina hoje? Fale-me sobre a Rede de Artistas e Intelectuais em Defesa da Humanidade.
Há de fato um esforço de aliança cultural. Se realmente se pretende construir na América Latina uma aliança que perdure, ligada por afetos, relações reais e diálogo, a cultura tem que estar presente. Os programas de aliança foram exitosos pela rede de distribuição de troca cultural. Há algum tempo, junto com representantes da Venezuela, Bolívia, podemos dizer que existia um Fórum de Ministros sobre o tema de alianças e distribuição cultural na América Latina, mas muito se falava, muito se discutia e em pouco resultava. Quando Cuba foi expulsa da OEA todos romperam, menos o México. Um ato de justiça poética. Hoje a América mudou muito e há melhores condições para o diálogo. A Rede de Artistas e Intelectuais é um caminho. Há um desafio tremendo, sei que poder haver traições, mas é um passo extraordinário.
O que o senhor acha da transição de abertura que Cuba passa no momento, na atual gestão de Raúl Castro. Há receio por parte de analistas políticos, de que a abertura política culmine em uma volta ao capitalismo. O senhor acha que há de fato essa possibilidade? Quais os impactos disso já podem ser vistos na identidade cultural Cubana?
Não há nenhuma possibilidade de que Cuba regresse ao capitalismo. Nos documentos estão estabelecidos os princípios do país se mantém na mão do Estado. As mudanças dizem respeito à gestão de não estatais; não se fala de privatização. Cuba não permite latifúndio. O conceito de privatização está excluído como política. Absolutamente. Portanto, não há nenhuma alternativa de retorno ao capitalismo. Estamos arrendando terras às cooperativas e famílias, e os camponeses têm a obrigação de fazer a terra produzir, porém, a propriedade permanece sendo do Estado e de todo o povo cubano. Ninguém vai ficar desamparado. A saúde gratuita para todos se mantém reduzidos os índices de mortalidade infantil. Fazemos uma medição de peso todas às crianças, para calcular os índices de nutrição e termos uma estatística. As famílias com crianças abaixo do peso recebem auxílio e são amparadas pelo Estado. Quantas tragédias se escondem atrás de estatísticas? O acesso à educação gratuita se mantém. A valorização e democratização da cultura continua sendo um elemento central e inegociável.
Por último, muito obrigada pela entrevista. Eu vejo que o senhor tem uma visão otimista. Como o senhor vê o futuro de Cuba para daqui a dez anos?
Não sou muito bom em futurologia... Mas prevejo uma Cuba socialista e soberana. Mais eficiente e mais produtiva. Com uma vida cultural intensa e diversificada. Uma Cuba com um sistema educacional eficiente, que transmite valores morais e éticos elevados. Que não dependa de petróleo, que possua uma economia renovada. Uma Cuba onde o consumo não esteja associado à felicidade. Que nosso modelo futuro tenha um componente de felicidade.
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