Cuba
Cuba ou um jeito de ser
O céu abre-se por volta do meio da tarde. Sem espanto para os cubanos, uma legião de nuvens grossas e pintadas de cinzento-escuro, caminha em direcção ao sítio onde estão muitos. Estão pela rua, pelas ruas. Fixam-se em intermináveis filas, as colas, que a ver pelas expressões calmas de quem espera, parecem não ser mais do que uma forma de ser, um pretexto para estar. Outros, e que também são muitos, estão encostados às paredes, sentados à porta de casa, alguns em degraus, outros a baloiçarem-se em cadeiras. As nuvens caminham ao seu ritmo. Constante, sem grande variação de velocidade. O ribombar dos trovões vai-se ouvindo. Vem de longe. Vai chegar perto. Para os cubanos a música é conhecida. A dança que se lhe segue também. Gotas enormes de água descem do cinzento-escuro. Batem na terra quente com precisão. Levantam salpicos de pó. Os que ainda há pouco estavam nas filas, nas portas, nas cadeiras, desviam-se um bocadinho. Encostam-se a um canto, inventam um abrigo. Esperam. Fixam os olhos na chuva que daqui a pouco vai passar. Os raios deixam adivinhar o outro lado do céu. Desenham riscos de fogo acima e por entre as nuvens. Arrepiam os ouvidos. Não os dos cubanos, que já estão habituados à sinfonia que se ouve, quase todos os dias. Mas para quem é de fora, os trovões assustam. O barulho ensurdece. Entra no corpo. Primeiro infiltra-se como um som fino, metálico, depois espalha-se, ecoa, como um estrondo gigante, invade os sentidos. O coração desobedece ao ritmo certo. A sorte, para quem é leigo nestes caprichos do céu, é que há sempre um cubano que procura acalmar com os olhos o desassossego de quem se encolhe aos estrondos. E que diz num jeito doce e calmo «é sempre assim, vai passar». É só esperar. E passa. Um calor ainda maior brota da terra. As nuvens mudam-se para cima de outras cabeças. E as colas voltam ao seu tamanho habitual.
Um carro passa. Um cão ladra. Um velho aproxima-se. Pede um lápis, um creme, uma caneta para o niño. À resposta negativa, tenta o inglês, um «stencil», sussurra, sem grande convicção, já com o rumo traçado estrada abaixo. Da janela aberta de uma casa ouve-se parte de um bolero. «No tengas miedo, que mi cariño é solo más de mi…». A voz é bonita, mas não tão encantadora como a do homem que está sentado junto ao balcão de um pequeno café, em Trinidad.Calça de ganga, camisola escura, viola junto ao peito, num sorriso fácil e terno, de eterno artista, com uma ligeira barba a triangular o queixo, ajeita a boina preta que lhe emoldura a cabeça. «O que conhecem de Cuba? Gostam de Pablo Milanês?» Sem esperar pela resposta, os dedos percorrem as cordas da guitarra. «E Sílvio Rodriguez? Música portuguesa não conheço, mas sei tocar alguma brasileira!», diz. Faz uma pausa. De novo sorri: «Olá, chamo-me Israel Moreno e sou trovador!». Apresentação simples, na certeza do que é. Na mesa em frente, junto à porta, um casal esguio de turistas olha-se, olha-o, enternecido em cumplicidades. Ao balcão fazem-se sandes de queijo com alface, tomate e maionese, por três pesos convertíveis, três CUCs. Entre o balcão e os turistas, Israel está absorvido pelos acordes. Ouve-se um «shiuuu» vindo de alguém. E juntamente com a luz que nasce depois das tempestades, a música entra, suave, no café pintado em tons de azul.
«Te amaré… te amaré… como al mundo, te amaré aunque tenga final, te amaré, te amaré en lo profundo, te amaré como tengo que amar…». O refrão é acompanhado em surdina por quem o ouve. Em cada olhar percebe-se uma viagem. Sem fazer barulho, o empregado do café pousa os «emparedados de queso» em cima da mesa. A música termina num ultimo «te amaré», prolongado, arrastado. Quase doloroso. Depois soltam-se as palmas, preguiçosas, mas honestas, de quem precisa de tempo dentro do tempo para descer da poesia de Sílvio Rodriguez. «Sei muitas músicas de Sílvio, querem ouvir mais?», pergunta Israel que não esconde a grande admiração que tem pelo poeta, cantor e revolucionário cubano. Tal como Sílvio, também Israel é um romântico de causas. Contagiante. Os olhos, os ouvidos, os sentidos, estão todos entregues a este trovador de passados. «Vou agora cantar uma música que fala do General Ochoa, que lutou pela independência de Angola e que foi fuzilado. Uma longa história…». Entregue à viola, embala a voz numa profunda «Angola, Angola…», permitindo lágrimas a quem o ouve, mesmo que Angola seja para alguns, como diz a música, «um nome estranho, dito em português, na geografia dos primeiros anos». Não o é para Israel, um apaixonado por História, principalmente pela que foi escrita pela sua «Cuba revolucionária». Com a viola junto ao peito, num permanente percorrer de dedos, assegura, o país está a avançar.
Eduarda Freitas
Eduarda Freitas é jornalista da RTP - Rádio e Televisão de Portugal - e colaboradora do jornal português EXPRESSO. Foi correspondente do jornal A BOLA e jornalista na SIC - Televisão. Trabalhou como jornalista no Semanário TRANSMONTANO e na Rádio INDEPENDENTE.
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