Cuba
"O nível médio de informação e cultura dos cubanos é muito maior do que dos brasileiros"
O nível médio de informação e cultura dos cubanos é muito maior do que dos brasileiros, defende jornalista brasileiro
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Carro clássico cubano, com desenho de Fidel Castro na porta. Por Veruscka Girio |
Por Cid Benjamin
Como alguns sabem, visitei Cuba durante uma semana, com mais nove amigos: Milton Temer, Alfredinho do Bip-Bip, Paulo Passarinho e seu filho Pedro, Mário de Oliveira, Vitor Iório, João Pimental (o Janjão), Zé Paulo e Carlinhos Siuffo (o Baiano). Ouvimos muita música, tomamos mojito, provamos a boa cerveja local, discutimos bastante política, aprendemos em conversa com os cubanos e apreciamos aquele belo país.
Agora, a pedido de alguns amigos do Facebook, faço aqui um rápido relato sobre o que vi na viagem.
À guisa de introdução, lembro algumas coisas, antes de entrar nos problemas por que passa a sociedade cubana.
Mesmo com a crise internacional, que tem servido de justificativa para a recessão brasileira, Cuba cresceu 4% no ano passado. A previsão para este ano é que o patamar se mantenha.
Mesmo com o fim do bloco socialista, que afetou muito o país, Cuba ainda tem os melhores indicadores sobre mortalidade infantil e mortes por parto das Américas. Seus números são melhores inclusive do que os dos Estados Unidos. Isso é fruto da atenção especial à infância e às mulheres grávidas.
Cuba tem a maior expectativa de vida das Américas, superior mesmo à dos Estados Unidos, o que chega a surpreender.
Cuba tem os melhores sistemas de saúde e educação das Américas, o que é reconhecido por organismos internacionais.
Algo que salta aos olhos de quem chega a Cuba é o fato de o nível médio de informação e cultura dos cubanos ser muito maior do que os brasileiros. Aqui, é raro uma pessoa humilde conseguir articular de forma coerente seu pensamento em frases concatenadas. Basta ver a maioria das entrevistas dos jogadores de futebol. Lá, qualquer um tem uma facilidade de expressão e um conjunto de informações que salta aos olhos.
Por fim, é justo lembrar que, ao se comparar a vida em Cuba hoje com a de outros países, é preciso que essa comparação seja feita com países similares a ela na época da revolução, como República Dominicana, Guatemala, Honduras etc. Não com países europeus, que já tinham um patamar superior de desenvolvimento. E, comparada com as populações de países que estavam em seu patamar de desenvolvimento, é inegável que a população de Cuba vive muito melhor do que elas.
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Bom, isso posto, vamos aos principais problemas da sociedade cubana hoje.
O problema maior continua a ser, e será ainda por algum tempo, a questão das duas moedas – o peso cubano, com o qual são remunerados aqueles que trabalham para o Estado, e o CUC, a moeda criada pelo Estado cubano, conversível para euro ou dólar em lojas estatais.
O governo continua garantindo produtos básicos na libreta, mas em quantidades insuficientes para o que uma família consome ao,longo do mês. E com pesos cubanos é pouco ou quase nada o quem se consegue comprar “por la libre”. Consegue comprar o excedente quem dispõe de CUCs. Por isso, quase todo mundo se vira, de uma forma ou de outra, para conseguir moedas fortes, a serem convertidas em CUCs. É comum, e tolerado, embora seja ilegal, que alguém que tenha um carro o use informalmente como táxi (lá não há taxímetros, e as corridas são combinadas antes com o passageiro). E pagas em CUCs. Muita gente deixa o país ou fica em Cuba trabalhando fora de sua qualificação, em geral em algo vinculado ao turismo, mas não só a ele, para receber em CUCs.
Uma amiga cubana, engenheira, fluente em inglês e francês, largou o emprego na sua profissão para trabalhar como funcionária administrativa de um consulado. Agora, tem uma oferta de emprego no Canadá para trabalhar na sua especialização, o que a deixa dividida, pois não gostaria de deixar Cuba.
Um cubano historiador, com quem conversei, ganha em pesos o equivalente a 40 CUCs – o mesmo valor que um grupo de quatro de nós pagou a um taxista para nos levar a uma praia fora de Havana e ficar conosco uma tarde inteira, esperando para nos trazer de volta. O historiador com quem conversei complementa seu orçamento porque às vezes dá palestras fora de Cuba e tem livros publicados no exterior.
Outra amiga, que participou da guerrilha e teve alto cargo na administração, hoje está aposentada e complementa os vencimentos alugando quartos em seu apartamento para pessoas recomendadas que vão a Cuba como turistas. Seu apartamento tem três quartos, é bem mobiliado e com vista para o mar.
Muitas famílias recebem ajuda de parentes que vivem no exterior. E não é uma emigração política, mas econômica. Essa emigração já não é mais mal vista, como nos primeiros tempos da revolução, quando quem saía era considerado quase contrarrevolucionário e desertor.
Além desse dinheiro enviado informalmente por pessoas da família ou amigas, há os contratos que o governo cubano com outros países faz para a exportação de cérebros. Aliás, hoje é esta, e não o turismo, a maior fonte de receita para Cuba. Para que se tenha uma ideia, o país tinha seis mil médicos quando da revolução. Três mil foram embora nos primeiros anos.
Hoje tem 11 mil só no Brasil.
Abrir-se para o turismo e, consequentemente, para o sistema de duas moedas foi inevitável depois do fim da URSS e do bloco socialista, por mais que traga problemas. Não fazer isso seria não se sustentar ou caminhar para algo parecido à Coréia do Norte – o que, além de indesejável, no caso cubano seria impossível, até pela localização geográfica do país.
Mas como sair dessa situação das duas moedas? A aposta é no fim do bloqueio. Hoje Cuba não tem crédito em bancos internacionais, sendo obrigada a pagar à vista tudo o que compra no exterior; qualquer navio que atraque na ilha não pode ir aos Estados Unidos durante seis meses; e as empresas que fazem negócios com Cuba não podem fazer negócios com os EUA.
A normalização das relações permitirá não só um incremento do turismo, mas também investimentos na área produtiva – sejam privados, em parceria com o Estado, sejam estatais. A mão de obra super-qualificada que tem o país poderá ser mais bem aproveitada. O Estado vai arrecadar mais e conseguir pagar melhor a quem trabalha pra ele e, assim, ir diminuindo essa diferença de padrão de vida entre quem trabalha por fora, recebendo moeda forte, e quem recebe pesos cubanos. Com o tempo acabaria o sistema de duas moedas. Não é uma aposta de curto prazo, como se vê. Mas não parece haver outro caminho.
A situação atual traz mais problemas, além dos tratados acima. A agricultura, por exemplo, tem sido um calcanhar de Aquiles desde a revolução. Cuba tem sol o ano inteiro e terras férteis. No entanto, não consegue suprir sua população dos alimentos necessários, tendo que importá-los. O aumento da produtividade exigiria insumos e fertilizantes, além da mecanização – e tudo isso só seria possível com divisas, que não existem. Os jovens provenientes do campo, depois que estudam e completam o ensino médio, não querem mais ficar lá. Preferem ir para a cidade e, às vezes, até trazem os pais. Resultado: a população rural é velha.
Hoje o Estado compra, a preços que ele mesmo fixa, 80% da produção do campo. Os outros 20% podem ser vendidos “a la libre”, a preços fixados pelo produtor. Perguntei se não seria o caso de se tentar uma espécie de NEP, dando maior liberdade para os camponeses venderem por sua conta a produção. Isso já foi tentado, mas o resultado foi a diminuição da oferta de alimentos e o aumento dos preços. A explicação é que, com pesos cubanos, não se pode comprar grande coisa. Assim, não havia incentivo para que os camponeses trabalhassem com mais afinco para aumentar a produção, pois isso não se refletiria num maior consumo para eles. Quando foi feita essa experiência, os camponeses aumentaram os preços e trabalharam menos.
Não houve aumento da oferta de alimentos.
De qualquer forma, o pior momento – muito pior, na opinião de todos – foi durante o “período especial”, nos anos seguintes à desintegração da União Soviética e ao fim do bloco socialista. Não havia o turismo e as pessoas passaram grandes necessidades. Por isso, mesmo quem fala das dificuldades de hoje, não deixa de dizer que, comparado àquele período, elas são pouca coisa. Estou convencido de que Cuba só não naufragou, como os “socialismos” do Leste Europeu, porque a direção do PC sempre teve a política no comando. O trabalho de politização do povo foi intenso, em todos os momentos. E isso não era só no discurso, mas na prática.
Um exemplo foi quando da ajuda de Cuba a Angola, quando da intervenção da África do Sul racista que resolveria o conflito a favor dos “movimentos de libertação” de direita. A população atendeu ao chamado de Fidel – que bateu na tecla da dívida histórica que Cuba tinha com os africanos, cujos antepassados tinham sido trazidos como escravos - e se inscreveu em peso para lutar ao lado dos militares profissionais cubanos. Essa politização e o sentimento patriótico no bom sentido (porque defensivo e não para oprimir outra nação) se manifesta a toda hora. É sintomático que, quando da libertação dos “cinco heróis” que estavam presos no EUA, a população tenha acorrido espontaneamente para as ruas. Todo mundo se abraçava, mesmo sem se conhecer.
Já se nota um grande incremento do turismo, em comparação aos últimos anos. Havana Velha, proclamada patrimônio histórico da humanidade, está sendo toda reformada, com recursos da Unesco. O que não está pronto está em obras. E sua arquitetura belíssima impressiona. Há uma enorme quantidade de restaurantes, bares, pequenas lojas (às vezes em casas de família cujas portas dão para a rua) vendendo todo tipo de souvenir, mas quase sempre relacionados com a revolução e seus heróis, ou com símbolos do país. Aqui, vale uma reflexão. Nós notamos no Brasil a presença do imperialismo, mas ela não é nem de perto o que havia em Cuba. Lá, chegou a existir uma lei legalizando intervenções armadas americanas que só foi extinta com a revolução. Cuba era pouco mais que uma colônia. Ao longo da história do país houve inúmeras intervenções armadas dos EUA e a arrogância imperialista era brutal. Eu diria até que o processo revolucionário – ao lado do combate à “tirania” de Batista, como eles se referem à ditadura - teve como componente essencial a recuperação da dignidade nacional.
Mais até que a questão do socialismo. Circunstâncias históricas fizeram com que só a revolução socialista pudesse recuperar a dignidade nacional. E uma coisa se uniu à outra.
A impressão é que, no futuro, com a abertura econômica, haverá uma significativa diminuição da presença do Estado em tudo o que não for serviço essencial ou atividade econômica relevante, que dificilmente será deixada ao sabor do mercado. Assim, a situação de hoje, quando o Estado é parceiro em quase todas as atividades econômicas relevantes com presença estrangeira (por exemplo, com 50% dos hotéis) vai mudar. Ao lado da multiplicação de pequenas iniciativas privadas individuais ou familiares, penso que vai haver maior abertura em ramos como hotelaria e outros não essenciais. Mas penso que o partido jogará todo o seu esforço para continuar garantindo saúde, educação e os serviços essenciais de forma universal, assim como mantendo o controle das atividades econômicas mais relevantes.
Já não se vê num horizonte visível uma abertura política, no sentido que conhecemos aqui. E isso não parece ser uma demanda da sociedade. Todas as pessoas politizadas com quem conversei valorizam muito o papel do Partido Comunista, não apenas como guardião de determinadas conquistas sociais, mas quase como um guardião da nação. Embora a abertura política possa trazer mais debate, creio que este se dará no partido e em seu entorno. Pluripartidarismo, nem pensar.
Deve, ainda, ser registrado que não há qualquer clima opressivo ou de medo. Aliás, quase não se vê polícia. Muito menos crimes ou atos de violência. Pode-se caminhar pelas ruas a qualquer hora do dia ou da noite sem qualquer receio de assalto. E só ouviu falar de Yoani Sanchez, aquela blogueira reacionária que anda pelo mundo falando mal de Cuba, quem é especialmente bem informado. Aliás, sempre se refere a ela de maneira depreciativa.
O incremento do turismo já abriu novas possibilidades aos cubanos. Os restaurantes cheios de turistas geram empregos. E não só para cozinheiros e garçons. Cada um deles tem um grupo musical, quase sempre de boa qualidade (aliás, não conheço um povo tão musical como o cubano, nem um país com tanta gente talentosa no campo da música). Os músicos que tocam nos restaurantes não são pagos por estes e vivem do que recebem quando, nos intervalos, correm o chapéu entre os fregueses. Isso é tão recorrente que chega a chatear, às vezes. Ao longo de um almoço, as pessoas são instadas a contribuir duas ou três vezes.
A oferta de charutos nas ruas é, também, grande. E, claro, eles são desviados (assim como outros produtos: quem trabalha na limpeza, por exemplo, desvia uma coisa ou outra, pra reforçar seu orçamento doméstico). Fiquei com a impressão que esses pequenos casos de corrupção (ao contrário de corrupção entre dirigentes do partido ou do estado) são tolerados. As camareiras perguntam permanentemente aos hóspedes se eles estão satisfeitos com seu trabalho ou quando vão embora e, às vezes, são explícitas no pedido de gorjeta.
Nesse quadro geral, como é inevitável, a prostituição ganhou impulso. Numa caminhada por Havana Velha, de noite ou de dia, um turista é quase sempre abordado por prostitutas. Em geral de forma discreta. Na entrada ou nos bares dos hotéis, elas também circulam, com a clara cumplicidade dos empregados. Tive a impressão de que há também tolerância das autoridades em relação à prostituição, sempre que esta não envolva menores e seja uma atividade particular e isolada, sem a exploração do lenocínio. Penso que essa postura é razoável.
Recomendo, ainda, aos visitantes que dêem uma olhada na TeleSur, uma TV aberta de iniciativa do governo venezuelano, em parceria com outros governos latino-americanos.
Lamentavelmente o governo brasileiro teve receio de despertar a ira dos grandes meios de comunicação aqui e não entrou no projeto. Só se pode assistir à Tele Sur pela internet. A emissora é exemplo de TV de boa qualidade.
Enfim, essas foram minhas impressões sobre Cuba de hoje. É um país que recomendo a todos a visita. Tem um povo muito parecido com o nosso, alegre, musical e que, pela sua resistência anti-imperialista e pela luta para construir uma sociedade mais justa, merece o maior respeito de todos.
Cid Benjamin é jornalista e escritor. Reside na cidade do Rio de Janeiro.
Fonte: facebook do autor.
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