Cuba: as armadilhas no caminho
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Cuba: as armadilhas no caminho


Por Frank Josué Solar Cabrales [*]
Fonte: RESISTIR.INFO

A Conferência Nacional do Partido Comunista de Cuba (PCC) celebrada em Janeiro último [2012] foi uma oportunidade única para saldar contas com o nosso passado, com a história do socialismo no século XX e com o modelo socialista verticalista e burocrático que em grande medida copiámos dos soviéticos. Ela pode ter sido o início de um debate que é há muito adiado na sociedade cubana: a análise da experiência da União Soviética, de como uma grande revolução foi traída e o poder foi usurpado aos trabalhadores. Do processo de restauração capitalista na URSS e Europa do Leste podemos aprender muito para saber porque se produziu, emendar os erros deles que repetimos aqui e evitar o mesmo destino.

Contudo, o momento não foi aproveitado para uma revisão a fundo do nosso modelo político. Já antes da Conferência era evidente que ela teria um perfil inferior ao do VI Congresso do PCC (Abril de 2011). Inicialmente fora dito que ambos eram momentos distintos, com igual nível, de um mesmo processo de actualização e que se separavam só para debater com maior profundidade os temas económicos no Congresso e os políticos, sociais e culturais na Conferência. Ainda que nesse momento tenhamos assinalado que a realidade social não se pode separar arbitrariamente, como se ela transcorresse em compartimentos estanques, tínhamos a esperança de que a reunião dedicada aos assuntos políticos produzisse impactos tão transcendentes como aquela referida à economia. Mas logo foi dito que a Conferência seria concentrada nos assuntos internos do Partido, que o seu documento base não seria discutido com todo o povo, como se fez com os Lineamientos , e sim só com os militantes, e que não se deviam levantar muitas expectativas sobre ela, porque as decisões importantes já haviam sido adoptadas no Congresso e do que se tratava agora era de adequar o trabalho do Partido às novas condições.

Esta actualização necessária do nosso funcionamento político torna-se muito mais imperiosa quando já começam a fazer parte da realidade quotidiana muitas das contradições e tensões sociais que advertimos que ia gerar o rumo económico traçado. Sob o seu amparo vão surgindo novas constelações sociais, com interesses próprios.

Um exemplo do que dizemos foi a tentativa dos transportadores privados em Santiago de Cuba, em Dezembro último, de subir em flecha o preço da passagem de um para dois pesos, um aumento de 100%. O episódio, ainda que não tenha passado da tentativa e durado só uns quatro dias, acendeu vários sinais de alarme e despertou outras tantas interrogações.

A atitude dos transportadores durante esses dias demonstrou que o sector privado tende a actuar (e fa-lo-á cada vez mais no futuro) corporativamente, concertando vontades a fim de exercer pressão como grupo social que defende interesses próprios contra os da maioria. Agora pode ser isolado, mas em outro momento poderíamos estar a ver um acordo em maior escala e poderíamos perder o controle. Hoje farão isso para aumentar os lucros, mas amanhã será para objectivos políticos.

Por outro lado, também foram significativas as respostas das pessoas, com reacções espontâneas que iam desde as reclamações directas perante os donos das camionetas, ou as queixas perante os órgãos locais do Partido e do Governo para que interviessem no assunto, até uma espécie de resistência passiva que consistir na negativa em tomar o transporte privado e pagar os dois pesos que eram exigidos. Ao boicote privado opunha-se um boicote social. Este tipo de iniciativas populares, que acabaram por ser decisivas para fazer retroceder o aumento, devia servir de exemplo para a concepção de estratégias de resistência social perante as relações de conteúdo capitalista que começam a aparecer.

Num dos melhores momentos do debate da Conferência Nacional do Partido, que pudemos ver pela televisão, um homem simples do povo, trabalhador por conta própria, expunha a contradição existente entre a autorização para contratar força de trabalho pelos cuentapropistas e o princípio socialista expresso na Constituição de que o Estado cubano proíbe qualquer forma de exploração do homem pelo homem. Vale a pena a análise das respostas que se deram no debate posterior pelos argumentos que continham.

A resposta que afirmou não haver contradição porque os trabalhadores do cuentapropistas em Cuba não eram explorados não merece nenhum comentário porque é insustentável a partir de qualquer colocação marxista medianamente séria. As outras posições que, apesar de admitirem a existência de uma contradição, defenderam a medida por considerá-la necessária tão pouco me parecem válidas. A argumentação de que essa exploração em Cuba encontra-se "amortecida" por toda a série de conquistas sociais garantidas pela Revolução, algo assim como uma exploração de baixa intensidade, recordou-me da história da filha que para acalmar a reacção colérica do pai diante da notícia da sua gravidez, disse-lhe para não se preocupar porque ela só estava um "pouquinho" grávida. A exploração não depende da maior ou menor quantidade de prestações ou protecções sociais, ou de uma maior ou menor distribuição social da riqueza, nem da maldade ou bondade de algum explorador, e sim da condição de assalariado, aquela a que Marx chamou escravidão moderna, na qual o patrão nunca pagar ao trabalhador o valor total do que produz, sempre fica com uma parte, chamada mais-valia, da qual obtém lucro, vivendo assim da apropriação do trabalho alheio. Isto é marxismo elementar. Do mesmo modo que uma mulher só pode estar grávida ou não estar, é-se explorado ou não se é. Simplesmente, não pode ser que seja só um "pouquinho" explorado.

No fim, pediram "tranquilidade" ao companheiro, que não se preocupasse porque a contradição seria resolvida em futuras revisões da Constituição para adequá-la às novas realidades que se vão impondo. O principal problema não é que seja inconstitucional e sim que a proibição da exploração do homem pelo homem é, juntamente com a abolição da propriedade privada, um pilar básico do socialismo. É certo que durante o período de transição sobrevivem elementos do capitalismo, mas eles referem-se fundamentalmente ao funcionamento da lei do valor, ao uso do salário como retribuição e estímulo ao trabalho, a existência da pequena propriedade e de relações mercantis. Mas pretender a construção do socialismo com a utilização da exploração do homem pelo homem é uma contradição em si mesma.

Tudo isto que vai acontecendo contribui para desmontar no povo a crença ilusória, ingénua, no benefício de medidas de tipo capitalista. Como temos advertido desde que se começou a pensar nelas, com estas reformas uma minoria se enriquecerá e saíra ganhando, mas a imensa maioria será a perdedora e se verá marginalizada dos benefícios económicos. De um socialismo obrigado pelas circunstâncias a repartir a pobreza, agora passaremos paulatinamente a um em que se acentuarão e aprofundarão as desigualdades sociais.

Durante 50 anos mantivemos um consenso social baseado num dos modelos redistributivos da riqueza mais justos e equitativos do mundo e no desfrute universal e gratuito de direitos sociais básicos que eram só um sonho em qualquer outro país. Em troca, aceitavam-se restrições importantes nos direitos políticos e depositava-se todo o poder numa liderança histórica carismática, que havia ganho uma enorme autoridade moral e política. Entendia-se a aceitava-se que o Estado actuava sempre a favor e em nome do povo, e garantia a permanência das conquistas revolucionárias. Portanto o controle político estrito era visto como uma arma contra a actividade subversiva inimiga.

Este modelo de controle político rigoroso foi eficaz para defender a Revolução frente ao assédio imperialista e à contra-revolução burguesa. Entretanto, nas limitações à participação política está a origem de dois fenómenos que agora ameaçam a economia planificada: um, no terreno económico, desperdício, a corrupção, o mau uso dos recursos, porque não existe nem o mecanismo de controle que implica a livre competição capitalista, nem tão pouco o mecanismo de controle que implica a democracia operária; e, dois, a falta de participação política real leva a uma situação de apatia, de aceitação do que vem de cima, na qual atrofia-se o músculo da crítica por não ser exercitado, o que finalmente pode levar à aceitação de medidas pró capitalistas praticamente sem contestação. O efeito económico da burocracia foi atenuado durante algum tempo, entre outras razões, pela relação com a União Soviética que até certo ponto criava uma situação de abundância de produtos básicos. Mas com a queda da URSS revelou-se com toda a sua força.

Se a partir de agora Cuba começará a parecer-se com os países "normais" onde o sector privado toma medidas para aumentar os seus lucros, e sobe os preços guiado pela lei da oferta e procura, então deveremos redefinir também os espaços e os mecanismo para que as pessoas possam protestar e defender-se dos desmandos e abusos do sector privado, e exercer pressão em sentido contrário.

Enquanto tivermos a enorme ameaça do imperialismo e a reacção capitalista precisaremos do partido único como garantia de unidade dos revolucionários e de sobrevivência da Revolução. Mas no discurso de encerramento da Conferência Nacional Raúl lançou uma advertência à qual é preciso prestar atenção especial porque reconhece uma debilidade perigosa: "A Revolução dos humildes, pelos humildade e para os humildes, que tanto sangue custou ao novo povo valoroso, deixaria de existir, sem que fosse efectuado um único disparo pelo inimigo, se a sua direcção chegasse algum dia a cair em mãos de indivíduos corruptos e covardes". Algo assim foi o que aconteceu na União Soviética. Lá também tinham um partido único e isso não os salvou de uma restauração capitalista selvagem. Uma militância habituada a não funcionar democraticamente e a obedecer às ordens que vinham de cima assistiu passiva ao derrube das conquistas revolucionárias, decretado pelos "indivíduos corruptos e covardes" da direcção, sem que fosse disparado um só tiro. A única maneira de evitar que se passe o mesmo connosco é contar com um partido unido, capaz de actuar como um só punho, e que ao mesmo tempo reconheça a existência de cada dedo da mão. Com um partido controlado pelas suas bases, não importaria que, por engano ou acidente, chegassem à direcção "indivíduos corruptos ou covardes". Não poderiam fazer o que quisessem, porque o poder estaria abaixo e não acima.

Raúl disse que o nosso partido único devia ser o mais democrático do mundo. É nossa responsabilidade converter isso em realidade e estabelecer os mecanismos para levá-lo à prática. Mas a democracia não a podemos entender só como escutar as opiniões das pessoas e processá-las adequadamente, ou as consultas com as massas, ou discordar "inclusive" até do que digam os chefes (o que devia ser visto como algo natural e não quase como um extremo). Democracia é que as bases tenham decisão e controle sobre todos os assuntos fundamentais. Conservando intacta a unidade orgânica e ideológica do Partido, no seu seio deve-se conceder espaço para o debate político entre diferentes opções e visões revolucionárias.

Quando existe um partido único, necessariamente todos os interesses de classe, de uma maneira ou de outra, tentam encontrar expressão dentro dele. Mais tarde ou mais cedo os elementos pró capitalistas em Cuba, na medida em que consolidem sua posição económica, aumentarão suas pressões e influências sobre o partido, para verem-se reflectidos no seu seio. Por esse motivo é decisivo que os elementos revolucionários, marxistas, a ala esquerda que representaria mais directamente os interesses dos trabalhadores, tenham a possibilidade de organizar-se e travar a batalha.

Raúl também advertiu sobre o perigo da burocracia. Mas como se combate a burocracia? Não é um fenómeno individual, de pessoas más, oportunistas ou corruptas, que esperam agachadas a oportunidade de provocar dano, que gostam muita de papelada ou da comodidade do gabinete e do ar condicionado, ou que se sentem felizes quanto mais travas põem às pessoas comuns. Pensar que elas possam ser controladas ou combatidas por outro grupo de burocratas, pessoas boas, responsáveis, honestas, decentes, comprometidas com o povo e o socialismo, é uma atitude totalmente ingénua e que deixa intacto o problema do poder burocrático. Não se pode colocar o problema em termos éticos, onde um grupo de funcionários honrados controla outros que não o são. A burocracia é um fenómeno objectivo, de um grupo dominante, que em condições de atraso e isolamento da revolução, escapa ao controle popular e cria seus próprios privilégios e interesses. Que dentro dela nem todos sejam corruptos, oportunistas e arrivistas e que haja revolucionários e honrados é um dado importante, mas secundário para a análise que nos ocupa. A burocracia não pode controlar-se a si própria. O único controle efectivo que se lhe pode opor para evitar que ela se converta num perigo contra-revolucionário é o dos trabalhadores e do povo em geral. A planificação socialista sem uma completa democracia operária é pasto para o desperdício, a ineficiência e o roubo. Lamentavelmente, na actualidade o discurso político não aponta na direcção de um maior controle democrático dos trabalhadores e sim na do reforço do papel dos chefes.

Nenhuma análise que pretenda o avanço do projecto cubano de justiça, liberdade e igualdade social pode limitar-se ao âmbito interno, ao que está nas nossas mãos e podemos fazer aqui. No final, o factor decisivo do qual dependerá o triunfo ou não do socialismo cubano será o desenlace da luta de classes a nível mundial. As condições actuais da crise capitalista e os ventos revolucionários e de indignação que percorrem o mundo, desde os Estados Unidos e as Europa até o mundo árabe, permitem-nos olhar com optimismo o futuro e nos reafirmam que a nossa causa é suficientemente justa e válida para não ceder nem um ápice frente ao capitalismo, que mete água por todos os lados.

Não se pode aspirar a uma sociedade superior se as riquezas obtidas alcançam-se através de relações de produção que fomentem a desigualdade, a exploração, a competição. Frente a uma via de utilização de medidas de estilo capitalista, que não terá outra porta de saída senão o capitalismo, há alternativas. Além do cuentapropismo, válido e permissível só numa pequena escala, devíamos estar a pensar também em fomentar cooperativas socialistas para determinados serviços, e na implementação do controle operário em todas as fábricas e empresas, entre outras medidas que promovam práticas e valores solidários. A solução socialista da encruzilhada cubana passa pela democracia operária no partido e nas estruturas estatais e de governo, pela participação democrática dos trabalhadores na planificação da economia e uma política internacionalista que promova a extensão da revolução socialista pela América Latina e o mundo.
08/Julho/2012

[*] Professor da Universidade de Santiago de Cuba.

O original encontra-se em http://www.universitat.cat/ucpc/?p=2456



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